Longo o hábito de João Brás na exímia arte de bater as cartas. A sua longa e comprovada experiência, e contrariamente a todos os julgamentos que possam existir sobre o tema, nunca foi nem nunca será, por si só, capaz de vencer todos os jogos em que intervém. No entanto, uma coisa parece autêntica. Ao fim do dia, quando se olham para os papéis rabiscados e se fazem os cálculos finais, dá-se facilmente conta que há mais pentes ganhos por João Brás do que por qualquer outro dos rivais. Existe mesmo, entre todos os praticantes que se juntam nas mesas do jardim, a clara e irreversível ideia de que ser um bom jogador de sueca exige uma inata sabedoria ancestral que vai buscar as suas raízes sabe lá Deus onde. Tal sapiência, contudo, não está ao alcance de todos, especialmente dos mais novos que, com medo ou por falta de atrevimento, têm sempre a infeliz tendência de guardar para o fim todos os trunfos que lhe caem em mãos em vez de os colocarem na mesa mal sintam os adversários fraquejar. Segundo Brás, a fibra dos verdadeiros homens sente-se na mesa de jogo e quando estes assumem, com coragem, a hora de destrunfar. E não é raro vê-lo, no calor das discussões tida à mesa de jogo, de sota de trunfo em risque a afirmar para quem o quiser ouvir:
- Os putos de agora são uns maricas! Se foderem como jogam às cartas o mais certo é serem eles os enrabados!
Estas tiradas impulsivas e apimentadas fazem as delícias de todos os que rodeiam a mesinha de metal pintada a verde onde as cartas cansadas pelo uso aterram e se desvendam. Retiram com uma franqueza comovente das bocas desdentadas e de próteses desniveladas daqueles homens o melhor que a vida lhes pode oferecer, uma gargalhada franca e sincera cujo som consegue afugentar, duma só vez, todos os pássaros das árvores.
Já velho e reformado, João Brás sente muito bem que a vida lhe é curta, mas as longas tardes à mesa com os outros conseguem torná-la eterna e brilhante.
Perdera a esposa dum momento para o outro. Beatriz foi sempre uma mulher adoentada e pobre, por isso era de adivinhar que a doença lhe levasse a alma mais cedo do que devia. Com a memória apagada aos poucos pelos cálices sagrados do vinho, João nunca se consegue lembrar com exactidão, quando questionado, se foi o coração ou a diabetes, mas em compensação sabe a data certa do óbito que se deu, cá para nós que fazemos conversa de tudo, há cinco anos. Todos os meses de Fevereiro, em respeito pela efeméride de tão funestas memórias, Brás chega-se á frente e compra um belo ramo de flores que deposita, sentido, na campa da mulher. Uma vez por ano chora e percebe o pouco que tem para oferecer ao mundo. Sente a sua mortalidade e solidão. Chega a casa deita-se e é o único dia em que não bebe uma gota de álcool nem joga às cartas. Não sabe porque o faz, mas sente dentro da sua simplicidade ordinária que é por respeito a alguma coisa que não consegue bem entender.
A reforma que recebe não é nada de especial, mas dá para os seus vícios. O cigarrito feito à mão, o futebol ao fim-de-semana e um copito ou outro de vinho tinto vindo directamente da pipa na tasca “O Carvoeiro”, um estabelecimento sujo e negro onde as baratas se sentem tão confortáveis como os bêbados.
João Brás, além do nome e dos números não escreve mais nada mas, como ele tem honra em afirmar, para se ser homem de verdade não se precisa de ser doutor. Trabalhou durante muito tempo nas obras e viu muitos engenheiros e doutores com muita mania e a saber muito pouco do ofício.
Lavar roupa, encomendar o gás e, acima de tudo, ter de se alimentar são das escassas artes que não domina. Para essas pequenas coisas do quotidiano é que lhe faz falta mulher, mas ninguém está para repartir o leito com alguém com tão pouco para oferecer além de noções complexas dum jogo inventado por surdos e mudos. João alimenta-se então dumas sopinhas de leite ao acordar, do vinho para matar a sede e duma ou duas buchas barradas com manteiga às refeições. Às vezes, quando a sorte o bafeja, e em troca de um ou dois galanteios, a vizinha lá lhe dá meia dúzia de fatias de fiambre que junta à manteiga na hora de fazer as sandes. A carne do porco sabe-lhe bem e fica contente por ter estas oportunidades a caírem-lhe do céu.
Para que a sua alimentação não falhe, fia-se no Matias. Um velho taciturno e de pesados passos que escolhera a vida de padeiro para sobreviver. Na verdade não é bem um padeiro como os conhecemos hoje em dia, mas antes um distribuidor de carcaças. Todas as manhãs acorda bem antes dos galos e lá vai ele, casa em casa, a distribuir o pão pelas maçanetas das portas. Cada cidadão seu cliente, tem todos os dias ao acordar, domingos incluídos, um saco cheio de papo-secos, e para isso só tem de pagar um excesso de 5 cêntimos por carcaça. A conta é junta ao último pedido do mês e escrito a lápis de carvão em números que fazem lembrar a caligrafia dos putos da primária. Nunca se conseguiu imaginar quantas carcaças tem aquele pobre coitado de vender por dia para poder sobreviver, mas graças a ele é que João pode ter pão em cima da mesa todos as manhãs sem ter de ir à padaria. Isso é, sem discussão possível e por muito que pareça obsceno, uma benção enorme na sua miserável vida. No entanto o velho padeiro, faz-se acompanhar a todas as horas, as de domingo incluídas, por um cão pasmacento e manco. Teve o desgraçado do animal o infeliz acaso de ser atropelado a 5 metros do Matias e de ser ele o primeiro a segurar-lhe na cabeça ensanguentada. Este lúgubre acontecimento fê-lo ser o cão do padeiro, e isso fodeu-lhe toda a réstia de esperança de ter um dono fino que lhe pegasse, com sacos de plástico, a sua merda quente depois de cagada. Apesar de estar sempre com cara de adoentado e com o corpo a pesar-lhe nas patas, nunca houve registo de não ter acompanhado o dono, uma única vez que fosse, na esgotante lida diária. Todas as doenças de cão que teve, e não se tenha pudor em dizer que foram muitas, curou-as sozinho enquanto trabalhava. Acordava cedo e sem nunca ladrar fazia-se às ruas, acima e abaixo com o dono a seu lado. O cansaço nunca lhe abandonou o pêlo, e isso era visível a quem por ele passava, razão para que, tirando o dono, nunca recebia festas no lombo, mas tratavam-no sempre como cão e essa era a única alegria que podia tirar da vida além, pois claro, do pão quente que o Matias lhe atirava ao chão às cinco da manhã.
Os longos jogos de sueca marcam as tardes de todos os dias. Começam depois do almoço e acabam quando o sol dá as últimas. Os estóicos vencidos revezam-se sempre que um pente é preenchido e acabam invariavelmente por serem alvos de todos os tipos de apupos possíveis. A coisa por vezes chega tão baixo, que é necessário a assistência intervir, separando à força das palavras, os arruaceiros. Como as equipas são sempre as mesmas, existem ódios duradouros que só param quando alguém morre. O que acontece frequentemente e sem nunca se esperar. Não há, contudo, o homenageante hábito de se assistir ao funeral do próximo, nem mesmo quem, com eles dividia os louros das vitórias. Homem morto é homem reposto e a lista de espera para jogar já vai longa. O parceiro de João Brás chama-se Quim que têm o péssimo hábito de o culpar de todas as derrotas. João não se fica e responde sempre à altura. São raros os casos em que se assiste a um ambiente tão mau no seio duma equipa. Mas tanto João Brás como o Quim não conseguem, contudo, jogar com mais ninguém, embora as ameaças de parte a parte sejam no sentido de a parceria acabar mais dia menos dia.
O vinho, ao contrário da tendência dos mais eruditos, não servia para enaltecer a confraternização, mas antes para atear o ódio entre todos. Quem perdia pagava copos aos outros, e ao fim do dia era raro aquele que não tombava pelos passeios a caminho de casa. Os casados ouviam, já dentro dos respectivos lares, os gritos eufóricos das mulheres que se queixavam porcamente da vida e daquilo que os vizinhos haviam de pensar; os solteiros por seu lado, airosamente prolongavam o dia e em romaria iam jogar à moeda para a tasca “O Carvoeiro” que estava sempre aberta até ao dono adormecer e cair para o chão, nunca se sabendo se por cansaço se por embriaguez.
Os Domingos são gastos de rádio de pilhas na mão a conferir, em directo, os resultados do totobola. Quando o honroso e glorioso Olivais e Moscavide joga em casa, Brás desloca-se até ao campo. Quer perca quer ganhe, o árbitro não sai do recinto sem ouvir mais do que uma vez as suas tão apreciadas vaias. É um homem rancoroso e que não esquece facilmente. Especialmente no que tocava aos maus momentos do homem do apito. Se o pobre desgraçado tiver o azar de assinalar erradamente, por exemplo, um simples lançamento lateral no início do jogo, então há festa até ao fim. Não interessa as vezes que repete as palavras da ofensa, desde que a razão permaneça com ele e o juiz saia do relvado com o orgulho ferido. Aproveita estas idas à bola para, inconscientemente gastar algum do seu dinheiro em sandes de coirato. O cheiro da gordura grelhada ao carvão puxa-lhe pelo apetite e já se sabe como elas sabem, especialmente para alguém que faz da bucha com manteiga a sua dieta diária. Bebe cerveja para empurrar o alimento, mas prefere em muito o vinho, que para além de ser mais barato bate mais forte na alma. As circunstâncias da vida fazem-no pensar seriamente na forma como deve gastar o dinheiro. Não se pode acusá-lo de não saber gerir os seus proveitos, isto apesar de uma ida ao futebol o deixar praticamente nas lonas. É importante para João mimar-se de quando em vez. O futebol ocupa-lhe uma parte considerável do tempo, embora só assistisse aos jogos do Olivais e Moscavide. Às segundas após acordar, tem o hábito de estar horas de totobola na mão a estudar as possibilidades da semana. Não aposta tanto quanto deseja, o dinheiro escasseia, mas sempre tem algum para as duas duplas e a tripla da praxe. Nunca teve muita sorte, uma vez ainda alcançou, a custo, o terceiro prémio. Não lhe valeu de muito, depois de levantar o dinheiro portou-se como um verdadeiro milionário e em menos de duas horas já não tinha nada a não ser uma piela monumental e a certeza de que para a próxima é que era. Mas apesar da legítima esperança, nada aconteceu e na semana seguinte o resultado foi tão desastroso que teve duas semanas sem jogar devido à angústia.
- Parece que fazem de propósito os cabrões, não é que perderam todos - dizia ao Quim enquanto molhava a ponta do lápis e fazia riscos nos resultados falhados.
À medida que os anos passam, desenhava-se no seu pensamento a ideia clara de que o mundo do futebol é um regabofe, e que aquilo tudo é uma cambada de ladrões que ganha rios de dinheiro à custa dos outros. Apesar da destreza intelectual, não muda os hábitos de domingo. Incluiu, como forma de protesto, o senhor da bilheteira no grupo de alvos do seu escárnio. O homem dos bilhetes deixa-o falar e ir em paz, mas desabafava ao freguês seguinte, “Ele que fique em casa, olha que caralho!”
Não se pode dizer que João alguma vez fosse um homem bonito, muito menos que tivesse um mínimo de charme. No entanto teve os seus momentos gloriosos com o sexo oposto. Tirando a mulher, nunca conseguiu comer alguém sem desembolsar o pouco que tinha. Premissa inabalável era o ter de pagar antes de foder. As putas, espertas, não iam em balelas e achavam por bem ver para crer. O romantismo que lhe estava entranhado fazia-o falar das suas relações como se não representassem um negócio entre as partes envolvidas. Tinha-as como conquistas suas, e na verdade era preciso algum jeito para que se deitassem com ele.