Pelo motivo inexplicável de ter bebido muito pouco no dia anterior, facto insólito para quem o conhece nem que seja só de vista, João Brás acordou bem mais cedo do que é costume. A vida que se esforçava por levar não permitia que fosse um madrugador. Também não o desejava. Desenvolveu ao longo da vida suficiente respeito por si próprio para só sair da cama quando não lhe sobrasse sono algum. Ainda há uns dias atrás, em jeito de provocação, desafiaram-no para se envolver profissionalmente no rentável negócio de guardar a vez dos outros na sempre tão concorrida fila do centro de saúde. O trabalho nem era complicado, consistia em estar à porta do Centro a partir das seis da manhã e marcar, quando chegasse ao guichet, uma consulta para algum necessitado. Desde que morrera a D. Elvira que mais ninguém pegou no biscate, nem sequer as eternas invejosas de que muito se queixavam da legitimidade do negócio, chegando mesmo a fazer algumas denúncias anónimas na polícia, embora sem o sucesso desejado. Os valores eram sujos, chegou-se mesmo a falar em três contos por consulta marcada para o próprio dia. Mas havia quem não pensasse duas vezes, principalmente a desgraçada da D. Engrácia, que em tempos difíceis pariu 4 filhos, todos eles frangalhotes e que volta e meia apareciam com um vírus novo. Alguns curava-os o tempo, outros nem a própria médica os conhecia. A pobre da Engrácia, que muito labutava para que houvesse sempre pão e sopa sobre a mesa, tinha o infortúnio do patrão ser pior que os animais e de não a deixar faltar, nem pelo mais forte dos pretextos. Cada minuto fora equivalia a uma hora descontada do ordenado, e não havia mas…ou se contentava com o que tinha ou então era substituída por outra que se submetesse com agrado e bons modos ao mesmo.
Era desta forma que, nestes conturbados tempos de modernidade económica, em que os homens mais parecem bichos, que a D. Elvira fez a sua fortuna. Conseguia mesmo ganhar quase outra reforma em meses de grandes calamidades. O que nem sequer era difícil, tendo em conta as variações de temperatura e a fragilidade dos novos rebentos.
Com o dinheiro arrecadado, rapidamente alargou o negócio para a agiotagem. A desamparada da Engrácia, aflita com tantas contas para pagar, era também aí a sua melhor cliente. Os juros não eram muito altos, mas seja como for, o que ganhava nos seus negócios dava para oferecer aos netos tudo aquilo que os molengas dos filhos não lhes podiam comprar.
Elvira era uma velha rija e nunca se assustou com quem não lhe queria pagar. O seu vizinho, toxicodependente por descendência, fazia questão de ser o cobrador, desde que, evidentemente, tivesse algum proveito pela sua inquestionável boa vontade. Aproveitava-se do seu nome, manchado pelas ruelas, para servir como método de persuasão. Fazia-o, no entanto, mais para perpetuar o nome da família do que propriamente pela velha, mas desde que decidiu ajudar Elvira, droga foi coisa que nunca lhe faltou. Mas, e apesar do escritor estar a gostar, chega de falar da Elvira deixando apenas o altruísta desejo que Deus lhe tenha a alma em paz.
João Brás, após o calmo despertar e como era seu apanágio, apalpou calmamente o seu abono de família. Contrariamente à sua vontade, não sentiu grande desenvoltura nele e por essa razão desistiu de se tocar. Por vezes, quando os despertares eram bafejados pela intervenção divina, ainda conseguia masturbar-se, mas a tendência, e apesar dos seus contínuos esforços era para, mais dia menos dia, deixar-se dessas aventuras. Tinha a consciência que o tempo das alvoradas gloriosas lhe passara por entre as palmas das mãos, mas ficava contente se uma vez por mês tivesse motivos sólidos para se contentar.
Acendeu a televisão e ficou a ver o programa matinal. Sempre o mesmo. Velhas chorosas pela reforma que não se esticava e que entravam em concursos da treta para poderem multiplicar o seu pecúlio. Na maioria das vezes conseguiam, apesar de nem sempre as perguntas serem fáceis.
- Então diga lá minha senhora qual é a capital de Espanha…
A velha coitada, lá dizia do outro lado da linha uns ais para ganhar tempo enquanto esperava uma revelação divina. A apresentadora, cheia de boa vontade, tratando as velhas concorrentes como filhos lá ajudava.
- Vá eu vou dar uma ajudinha…Ma…Ma…Ma…
E a velha nada…
- Ma…Ma…Ma…
E derepente a luz:
- Ma…Ma…Marcelona!!!!
João nunca tinha vontade de fazer o pequeno-almoço, isso apesar da fome acordar bem antes dele próprio. Dava muito trabalho e tudo o que desse trabalho era alvo de desinteresse. Esperava assim até ao meio-dia, lá para a altura em que a sirene dos bombeiros soava pelos céus quer fizesse chuva ou sol, e juntava-se aos outros coitados que dividiam a panela de sopa no Centro de Dia. Era uma vida de merda, ele sabia-o, mas pouco importava. Era o preço que tinha de pagar para ter acesso à sua grande paixão de barriga cheia. As cartas. Não as 52, como os baralhos inteiros vindos da China têm, mas apenas 40, dez de cada cor como mandava a tradição e o hábito.
Era então por isso, sempre que se sentava no banco do jardim e era anunciado o trunfo depois de lhe darem as suas dez cartas, que meus amigos, o mundo calava-se e apreciava maravilhado a sua arte.
Era desta forma que, nestes conturbados tempos de modernidade económica, em que os homens mais parecem bichos, que a D. Elvira fez a sua fortuna. Conseguia mesmo ganhar quase outra reforma em meses de grandes calamidades. O que nem sequer era difícil, tendo em conta as variações de temperatura e a fragilidade dos novos rebentos.
Com o dinheiro arrecadado, rapidamente alargou o negócio para a agiotagem. A desamparada da Engrácia, aflita com tantas contas para pagar, era também aí a sua melhor cliente. Os juros não eram muito altos, mas seja como for, o que ganhava nos seus negócios dava para oferecer aos netos tudo aquilo que os molengas dos filhos não lhes podiam comprar.
Elvira era uma velha rija e nunca se assustou com quem não lhe queria pagar. O seu vizinho, toxicodependente por descendência, fazia questão de ser o cobrador, desde que, evidentemente, tivesse algum proveito pela sua inquestionável boa vontade. Aproveitava-se do seu nome, manchado pelas ruelas, para servir como método de persuasão. Fazia-o, no entanto, mais para perpetuar o nome da família do que propriamente pela velha, mas desde que decidiu ajudar Elvira, droga foi coisa que nunca lhe faltou. Mas, e apesar do escritor estar a gostar, chega de falar da Elvira deixando apenas o altruísta desejo que Deus lhe tenha a alma em paz.
João Brás, após o calmo despertar e como era seu apanágio, apalpou calmamente o seu abono de família. Contrariamente à sua vontade, não sentiu grande desenvoltura nele e por essa razão desistiu de se tocar. Por vezes, quando os despertares eram bafejados pela intervenção divina, ainda conseguia masturbar-se, mas a tendência, e apesar dos seus contínuos esforços era para, mais dia menos dia, deixar-se dessas aventuras. Tinha a consciência que o tempo das alvoradas gloriosas lhe passara por entre as palmas das mãos, mas ficava contente se uma vez por mês tivesse motivos sólidos para se contentar.
Acendeu a televisão e ficou a ver o programa matinal. Sempre o mesmo. Velhas chorosas pela reforma que não se esticava e que entravam em concursos da treta para poderem multiplicar o seu pecúlio. Na maioria das vezes conseguiam, apesar de nem sempre as perguntas serem fáceis.
- Então diga lá minha senhora qual é a capital de Espanha…
A velha coitada, lá dizia do outro lado da linha uns ais para ganhar tempo enquanto esperava uma revelação divina. A apresentadora, cheia de boa vontade, tratando as velhas concorrentes como filhos lá ajudava.
- Vá eu vou dar uma ajudinha…Ma…Ma…Ma…
E a velha nada…
- Ma…Ma…Ma…
E derepente a luz:
- Ma…Ma…Marcelona!!!!
João nunca tinha vontade de fazer o pequeno-almoço, isso apesar da fome acordar bem antes dele próprio. Dava muito trabalho e tudo o que desse trabalho era alvo de desinteresse. Esperava assim até ao meio-dia, lá para a altura em que a sirene dos bombeiros soava pelos céus quer fizesse chuva ou sol, e juntava-se aos outros coitados que dividiam a panela de sopa no Centro de Dia. Era uma vida de merda, ele sabia-o, mas pouco importava. Era o preço que tinha de pagar para ter acesso à sua grande paixão de barriga cheia. As cartas. Não as 52, como os baralhos inteiros vindos da China têm, mas apenas 40, dez de cada cor como mandava a tradição e o hábito.
Era então por isso, sempre que se sentava no banco do jardim e era anunciado o trunfo depois de lhe darem as suas dez cartas, que meus amigos, o mundo calava-se e apreciava maravilhado a sua arte.
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