O caminho que te leva até à estação dos comboios é um emaranhado de ruelas secundárias assombradas pelo betão dos prédios de 10 andares que, virados uns contra os outros, assumem o orgulho e a rigidez de peças de xadrez prontas a serem jogadas no início de qualquer partida. Fazes o trajecto de 10 minutos em passos curtos e cansados enquanto os teus olhos se colam, com desalento, no alcatrão molhado onde reparas, sem o querer, nos pacotes de maços de tabaco amachucados e nas folhas de jornais gratuitos a voarem como anúncios de verão nas rédeas duma avioneta.
“Portugueses perdem poder de compra”
“Portugueses perdem poder de compra”
Nada do que possas ver por aqui te traz uma recordação de infância ou de felicidade capaz de te confortar nesta manhã de chuva. Nasceste noutro subúrbio, noutro bairro e, desde que te mudaste para a casa que compraste nesta periferia da cidade, deixaste de poder ouvir as vozes dos teus vizinhos a desejarem-te os bons dias e a perguntarem, curiosas, pela tua família. Sabias bem, na altura, os seus nomes, tanto os próprios como os apelidos e todos reclamavam, com alguma vaidade, que andaram contigo ao colo ainda eras tu um bebé.
Lá no bairro onde moravas e cresceste, as vidas das pessoas cruzavam-se em vários pontos como se cruzam nos argumentos dos filmes. As mães dos teus amigos trabalhavam juntas na mesma fábrica e os filhos delas estudavam todos na mesma escola. Por isso é que, quando alguém fazia anos, havia festa e todos eram convidados para comer gelatina e pudim instantâneo. Mas se, por outro lado, a desgraça viesse, não vinha só para alguns, como no dia em que a fábrica dos alemães fechou e a vida no bairro se tornou cinzenta e angustiante e poucas eram as famílias que tinham motivos para poderem dormir descansadas. Nesse bairro que cresceste, por entre aquelas ruas com nomes de médicos e revolucionários, estão guardadas as tuas melhores recordações. Na rua Dr. Egas Moniz, para desespero da tua mãe, o buraco que te fez cair e levar 5 pontos no joelho. Na Dr. Patacão a porta do armazém que fazia de baliza nos jogos de futebol e na Dra. Maria Rosário o vão de escadas onde acabaste o teu primeiro namoro. Não é de estranhar que, cada vez que lá vais visitar os teus pais, te sintas mais leve que no resto dos outros dias. Isto porque te recordas de coisas que te permitem ter uma história e um passado digno de ser lembrado. Existe, naquelas ruas, um sentimento de protecção tão grande que a falta dele te deixa desiludido e amargurado. Como hoje, por exemplo, enquanto caminhas para a estação por entre prédios cujas janelas não apanham sol o ano inteiro. Não existe ninguém que passe por ti e te pergunte como te sentes ou como vai andando a vida. Ao invés, os olhares procuram esconder-se no alcatrão e nas beatas agrupadas nas esquinas das sarjetas. As vossas vidas tocam-se apenas nos momentos em que lêem, com desconforto, as mesmas notícias nas páginas dos jornais que são sopradas pela corrente de ar resultante duma má arquitectura urbanística.
“Portugueses endividam-se mais.”
É nestas ruas sem história que escreves a tua biografia de homem adulto. Uma história com poucas páginas e com a letra irresoluta como a dos grafittis por baixo das janelas do rés-do-chão.
Hoje é um dia em que chove e faz frio e foi azar um dia como este não ter caído ao fim-de-semana. Podias ter ficado na cama a ouvir as gotas da chuva a bater na persiana sem te preocupares com o momento em que o despertador te dá a conhecer as notícias do dia. A subida das taxas de juro, do preço do barril do petróleo ou a divulgação dum estudo pouco abonatório para o futuro de Portugal. Podias até chegar perto da tua noiva e enroscares-te nela de forma a teres uma erecção. Mas em vez disto tudo, tens 10 minutos para chegar à estação e apanhares o teu comboio. E se, por alguma razão, não o conseguires, já sabes que vais ter uma hora descontada no teu salário no mês que vem.
Não era, portanto, má ideia começares a pensar em acelerar o passo.
1 comentário:
lindo.. y dado o meu frágil estado emocional, até chorava se me deixásse..
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