sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Funcionario (3ªParte)

Na estação as pessoas escapam-se à chuva encostando-se à parede hirtas e amuadas como soldados numa parada militar. Estão com os sapatos molhados e sentem a humidade a lamber-lhes a carne fria. Tentam aquecer-se encolhendo os dedos e soltando ar quente da boca para as palmas das mãos. A condensação desenha balões de banda desenhada no ar que depois desaparecem por entre o silêncio das tosses e das escarras verdes que são lançadas ao cimento. Cheira a ferro e uma voz imperceptível indica a linha em que parte o comboio.
As tuas manhãs são cronometradas ao segundo e obrigam-te a olhar para o relógio do telemóvel uma vez a cada 5 minutos. Sabes que, se acordares às 7:15 podes, depois de tomares banho e comeres o pequeno-almoço, apanhar o comboio das 8:15 para chegares ao metro às 8:45. Deste modo estás habilitado a picar o ponto entre as 8:55 e as 9:00. É sem dúvida uma manobra arriscada, ainda para mais quando tens a consciência que qualquer atraso que ultrapasse os 5 minutos equivale a um corte salarial. Em casos excepcionais, como uma avaria nos transportes ou uma greve, a benevolência é maior e nada te é descontado, desde que o atraso seja justificado com uma declaração a comprovar tal vicissitude. Para conseguires essa declaração vais ter de passar uns bons 30 minutos numa fila formada por outros trabalhadores, também eles, necessitados do mesmo. A espera é silenciosa e cansativa e termina quase sempre contigo a desistir e a preferir perderes 5 euros do que te submeteres a tão humilhante espera.

Declara-se que, para os devidos efeitos, no dia ___/___/___ entre as ____ horas e as ____ horas a circulação de comboios esteve interrompida pelo motivo de ______ .
O Funcionário:


A necessidade dum comprovativo como este é um bom indicador quanto ao apreço que os teus superiores têm por ti e também à débil posição que ocupas neste rodopio económico e social a que chamam carinhosamente de globalização. Na fila para o guichet, onde funcionário preenche à mão os espaços deixados em branco como se fossem parte dum teste de língua estrangeira, sentes-te sempre mais emotivo e cresce em ti uma vontade quase incontrolável de chorar. Escondes os teus olhos húmidos olhando para os sapatos velhos e de má qualidade que envergonhadamente calças.

O comboio chega e os passageiros tomam as suas posições na beira da plataforma de embarque. São posições estudadas e marcadas na memória desde o primeiro dia em que pisaram esta estação. Todos sabem que, se estiverem em determinada posição na altura em que o comboio pára, terão a possibilidade de estarem mesmo no centro de uma das portas da carruagem podendo, desta forma, entrar primeiro que os outros e assim habilitarem-se a um dos três ou quatros lugares sentados disponíveis. Terão de ser lestos e astutos e o uso da força poderá ajudar a desequilibrar os concorrentes, dando uma vantagem importante a quem ela recorrer. Quando as portas se abrem, os passos apressam-se e quem consegue o assento tem motivos para ficar feliz. Afinal, vão ser poucas as alegrias sentidas ao longo do dia entre fotocopiadoras encravadas e toques incessantes de telefones. A ti João, habituado que estás a ser ultrapassado a toda a hora, resta-te ficar de pé e esperar que esta viagem de 30 minutos não demore muito a passar.
Fechas os olhos com força, respiras fundo e ficas a sentir o movimento.

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