Só para que conste, este é apenas mais um dia da pior semana que a tua memória é capaz de se lembrar.
Acordas de manhã e ouves a chuva a bater forte na persiana da janela do teu quarto. Antes de te levantares da cama para ires trabalhar, já sabes que os quinze minutos que te separam da estação de comboios vão ser gastos na tentativa de te abrigares no único chapéu-de-chuva que compraste na vida. Um pequeno e desdobrável que não vale a ponta dum chavo e que continua ferrugento e torto como sempre o conheceste. Não vais conseguir grande coisa com ele e, ainda deitado, consegues perceber que vais ter um dia de merda. Advinhas, sem esforço, a água a ensopar todas as tuas roupas e o frio do Inverno a fazer-te tremer até ficares exausto.
Isto tudo ainda antes de apanhares o teu comboio para a cidade.
Levantas-te da cama quente e repetes a palavra foda-se tantas vezes que soa como se fosse parte de uma reza. Arrastas os pés pelo chão frio e começas a espirrar com força. Quase que sufocas com o teu próprio ranho que vais limpando à manga do pijama até chegares á casa de banho onde te assoas como deve ser.
Ouves com demasiada clareza o som da urina da tua vizinha de cima a bater na água da sanita. Esse som repetitivo e constante traz consigo uma imagem que te obriga a respirar fundo três vezes seguidas antes de te confrontares com a certeza de que a recordação mais forte que tens da Sra. Lurdes é mesmo esse som. Cresce em ti a convicção que te vais lembrar deste pensamento sempre que a Sra. Lurdes passar por ti e te desejar os bons dias ou te segurar a porta do prédio quando tens as mãos ocupadas com as compras do mês.
Quando entras na tua própria casa de banho fazes o esforço natural para que a força da gravidade no teu mijo passe despercebida, evitando que a tua vizinha tenha um sentimento recíproco quanto às recordações que possa guardar de ti.
Acordas de manhã e ouves a chuva a bater forte na persiana da janela do teu quarto. Antes de te levantares da cama para ires trabalhar, já sabes que os quinze minutos que te separam da estação de comboios vão ser gastos na tentativa de te abrigares no único chapéu-de-chuva que compraste na vida. Um pequeno e desdobrável que não vale a ponta dum chavo e que continua ferrugento e torto como sempre o conheceste. Não vais conseguir grande coisa com ele e, ainda deitado, consegues perceber que vais ter um dia de merda. Advinhas, sem esforço, a água a ensopar todas as tuas roupas e o frio do Inverno a fazer-te tremer até ficares exausto.
Isto tudo ainda antes de apanhares o teu comboio para a cidade.
Levantas-te da cama quente e repetes a palavra foda-se tantas vezes que soa como se fosse parte de uma reza. Arrastas os pés pelo chão frio e começas a espirrar com força. Quase que sufocas com o teu próprio ranho que vais limpando à manga do pijama até chegares á casa de banho onde te assoas como deve ser.
Ouves com demasiada clareza o som da urina da tua vizinha de cima a bater na água da sanita. Esse som repetitivo e constante traz consigo uma imagem que te obriga a respirar fundo três vezes seguidas antes de te confrontares com a certeza de que a recordação mais forte que tens da Sra. Lurdes é mesmo esse som. Cresce em ti a convicção que te vais lembrar deste pensamento sempre que a Sra. Lurdes passar por ti e te desejar os bons dias ou te segurar a porta do prédio quando tens as mãos ocupadas com as compras do mês.
Quando entras na tua própria casa de banho fazes o esforço natural para que a força da gravidade no teu mijo passe despercebida, evitando que a tua vizinha tenha um sentimento recíproco quanto às recordações que possa guardar de ti.
Vais ter agora de fazer a barba e essa obrigação faz-te dizer mais asneiras. Fechas os olhos com força ao mesmo tempo que inspiras e expiras fundo. Prometeras com alguma ingenuidade que irias tratar disso ontem à noite, mas a preguiça apagou-te essa informação do cérebro. Abres a torneira e esperas que a água aqueça, mas lembras-te que deixaste o gás fechado e vais ter de caminhar até á cozinha para o ligares. Fazes lento o trajecto e tentas ligar o esquentador com um movimento displicente que não resulta obrigando-te a repetir todo o processo de ligação. Olhas para o lava-loiça e reparas que também não lavaste o que tiveras prometido lavar, mesmo que essa promessa fosse apenas para continuares deitado no sofá a ver sem interesse um programa de televisão. Voltas para a casa de banho com a mesma vontade que a abandonaste e interrogas-te se o facto de ouvires o mijo dos vizinhos tem alguma coisa a ver com a qualidade da construção do prédio.
Esperas que a água aqueça e quando finalmente lhe sentes o calor, molhas uma toalha que levas à cara. Demoras-te com ela na face porque aquela temperatura deixa-te uma sensação boa por todo o corpo e faz-te desejar não sair de casa o dia todo. Repetes várias vezes o movimento até ficares certo que os poros já estão devidamente abertos, embora sabendo que, faças o que fizeres, vais acabar por ficar com a pele irritada e marcada com pequenos cortes que te vão dar um aspecto repugnante ao olhar dos outros.
Encaras a tua figura no espelho e acusas o tempo que passou desde a última vez em que te olhaste com vaidade. Esqueceste facilmente quem eras quando compravas roupa de marca para sair à noite com os amigos e passavas, na altura, uma pequena eternidade nas lojas da baixa a escolher calças que te salientassem as pernas e camisolas que caíssem sem mácula nos ombros. Estes momentos são tão velhos que sentes pena de não recordares a última vez que isso aconteceu.
Esqueceste também as vezes em que, depois de tomares o teu banho, ouvias música a altos berros e dançavas ao som dela enquanto te vestias e te sentias feliz por estares convencido de que todos os teus sonhos poderiam ser alcançados com um mero estalar de dedos. Acreditavas tanto nas tuas capacidades que nem eras capaz de te imaginares num futuro. Eras o teu próprio presente e era confortável não ter um passado magoado e ferido a atirar-te merdas à cara todos os dias. Merdas que doem tanto como o ardor que sentes no pescoço por teres uma pele sensível que não consegue aguentar a porra duma lâmina a passar-lhe por cima duas ou três vezes seguidas.
Saltas para a banheira a tremer de frio e ligas a água que já vem meio quente. Deixas que ela escorra sobre ti e o calor que sentes sabe-te muito bem. Fechas os olhos e pensas que merecias que este momento durasse o dia todo. A água a cair sobre ti e a aquecer o teu corpo nu. Merecias também dormir mais oito horas e mais oito a seguir a essas oito. Merecias mesmo que o génio das vontades batesse à porta e te concedesse 3 desejos que pudessem ser renovados a cada quinze dias. Mas agora, o que querias mesmo, era voltar para a cama e dormir profundamente com o teu corpo quente e relaxado.
Ficas tanto tempo debaixo do chuveiro que só te dás conta disso quando o ar se torna difícil de respirar. Fechas a água e a pequena casa de banho é um nevoeiro rarefeito que embacia todos os azulejos brancos quebrados com o tempo. Podes contratar o melhor pedreiro, utilizar os melhores materiais à venda no mercado que o tempo fá-los sempre quebrar. E a ti também. Também foste quebrado pelo tempo e infelizmente já passaram todos os anos a que a garantia dava direito. Agora és uma imagem sem interesse e sem uma história digna de nota que mereça ser contada. Claro que, ainda assim, tens a plena consciência de que foste abandonado por ti próprio. E, mais uma vez, deixaste fugir da memória o dia em que te abandonaste pela primeira vez.
O vapor permite que continues aquecido mais uns segundos, o suficiente para que te possas vestir com a roupa que deixaste no puxador da porta. Tentas ser o mais lesto possível mas não evitas ficar com pele de galinha e começas a tremer.
Tomas o pequeno-almoço devagar e sem pensar em nada a não ser o que te espera no trabalho e na vontade de voltares à cama. Respiras fundo três vezes e engoles mais uma colherada de Corn Flakes. Olhas para um panfleto de hipermercado e consultas as promoções da semana. Deixa-te ansioso o pensamento que amanhã, à mesma hora, estarás sentado nessa mesma cadeira de cozinha, a olhar para o mesmo panfleto e a pensar nas mesmas coisas. Respiras fundo mais três vezes.
Enquanto comes, vais ouvindo o som dos passos dos teus vizinhos a sair dos elevadores e a baterem com as portas. Quando olhas pela janela para a rua vês os lugares de estacionamento a ficarem vazios.
Acabado o pequeno-almoço, lavas os dentes, pegas no saco de lixo que deita um cheiro a podre e sais de casa tão cansado como quando chegaste no dia anterior. Chove imenso e as tuas piores previsões confirmam-se. Antes de te pores a caminho, uma pequena gota entra-te pelas costas fazendo-te sorrir enquanto murmuras: “Claro”. É tão fácil, por vezes, adivinhares o que a vida te reserva...
O teu nome é João Silveira e esta é apenas mais uma manhã na tua vida de que te vais esquecer tão rapidamente como todas as outras.
8 comentários:
Boa!
Que venham daí mais primeiros capítulos, ou "quartas capas", termo que aprendi hoje.
E já agora que venham outros capítulos também. Cá os espero.
Com amor, como sempre.
melzinha
Muito bom!
Fico à espera do próximo capítulo e depois também quero um autógrafo, sim?:p
Compra uma merda de um aquecimento para a casa e um pacote de lenços de papel, João!
E arranja uma gaja fixe como a mulher do autor!
Tudo o resto, ainda vá que não vá, mas Corn Flakes, não!!
..é preciso ajuda, pretenciosa??
pl.
Joãozinho, muda de casa! Ou não esquecerás mais a Lurdinhas...
Aahh que saudades do amigo Hugo "poeta" de Carvalho. Sabes o que me dava uma grande satisfação? Era ver as crónicas futebolisticas do Hugo Gaby Alves publicadas neste ou em qualquer outro blog.
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