sexta-feira, 28 de novembro de 2008

O teu primeiro postal de Natal deste ano

Ok, pronto. Este ano estás mesmo aborrecida e enquanto te arrastas pelas ruas, reparas no cliché das luzes coloridas reflectidas na calçada molhada. Estão todas misturadas e distorcidas como aquele quadro que roubaram na Noruega ou lá onde foi. Como é que se chamava? Ah, sim O Grito. Pois é isso mesmo que as cores te fazem lembrar, O Grito.
Antigamente o Natal parecia-te bem mais sincero e inocente. Por muita boa vontade que tenhas, e acredita que és uma mulher cheia de boas intenções, não podes deixar de pensar nas noticias que abriram todos os dias os telejornais e que estiveram nas estampas dos periódicos. Lembraste ou não desses dias, hã? Os despedimentos colectivos, os desfalques capitalistas ou as constantes subidas das taxas de juro. É que depois de seres massacrada um ano inteiro com o endividamento das famílias não deixa de ser constrangedor assistir às lojas cheias de gente de embrulho debaixo do braço e a sobrecarregar a rede multibanco. É um bocado como as aventuras do Asterix que, depois de muitas dificuldades com os romanos, acabam sempre em festa e com o bardo amordaçado. Só que a ti calha-te sempre o papel do bardo e parece, aqui para nós, que ficaste sem o direito ao teu pedaço de javali.
Repara que, até quando olhas para uma simples árvore de Natal plantada no Terreiro do Paço, à vista de todos, não consegues evitar a leitura da palavra Millennium lá escrita. Que raio de sensações esperam que tenhas quando és confrontada com fotos de famílias abraçadas e enquadradas ao lado do nome da entidade que, todos os meses e durante os próximos, digamos…40 anos, as vai privar de metade dos rendimentos? Provavelmente não é essa a imagem que instalarias como wallpaper ou à qual recorrias se um psicanalista te pedisse para imaginares algo agradável e confortante antes de te hipnotizar. Mas o nome do banco é apenas uma marca como todas as outras marcas dum sistema que extorquiu durante meses o máximo que pôde aos seus clientes ao mesmo tempo que mentia sobre as razões da extorsão. “Admitimos, fizemos merda! Desculpem, não foi de propósito e não volta a acontecer. Palavra de honra.”
Não consegues sentir qualquer tipo de esperança neste ambiente e começas a estar verdadeiramente cansada. Quer dizer, não é um cansaço físico, como se acabasses de picar o ponto depois dum dia de trabalho, 8 horas em frente a um computador ou 9 atrás dum balcão sem saberes muito bem quando te calha a próxima folga. É um esgotamento por estares sempre no fim da pirâmide a topar os mesmos comportamentos vezes sem conta e teres a certeza que nada se transforma para melhor. Isto apesar dos americanos virem para a rua saudar o momento da viragem.
Mas queixas à parte, todos os anos em Dezembro tendes a seguir o teu rebanho. A tua vida transformou-se num ciclo controlado por um cronómetro de forno do IKEA de 8,99 euros em forma de galinha. Vais oferecer as mesmas prendas, fazer as mesmas refeições, deitar-te com as mesmas angústias e escrever as mesmas mensagens de treta no telemóvel. As empresas de telecomunicações, que por acaso até patrocinam as luzes natalícias da Av. da Liberdade já começaram a fazer estimativas para os lucros deste ano. Pelas últimas contas já tinham ultrapassado os dez milhões. Aonde é que se meteram os velhinhos cartões da UNICEF?
Voltando a ti. Aposto contigo, tudo o que poupaste na vida, que vais voltar a oferecer uma camisola da Zara ao teu pai, um livro do Saramago ao teu cunhado, um perfume italiano ou americano de 50 euros ao teu marido e um puzzle da Disney ao teu sobrinho (desta vez com mais 35 peças que o do ano passado porque ele é mais velho e inteligente). As pessoas perderam mesmo a capacidade de se mimar. A mensagem que tens a dar ao mundo enquanto presa desta gaiola a que chamam aldeia global é que, se tivesses alguma voz de controlo, mandavas toda a gente comprar apenas uma lembrança até 10 euros e farias uma troca de presentes universal. Tá bem, provavelmente não conseguirias convencer os espanhóis a antecipar aquele hábito do dia dos reis, mas poupavas muito tempo e dinheiro a todos. Era o teu contributo para a fraternidade mundial. Nada mau!
Contudo, tens contigo aquela sensação carinhosa e ingénua que a história do espírito de Natal até foi capaz de ter sido uma boa ideia. Pelo menos durante o tempo em que não se tomava banho e se era queimado na fogueira. Mas agora, para manter a chama, era bom que a esperança e o consumismo fossem eliminados da equação. Regista isto antes de pegares no teu cartão hipermercado feliz e comprares brinquedos a 50% de desconto: esta globalização vai fazer ao Natal aquilo que já fez ao mundo. Destruí-lo pedaço a pedaço até sobrar um grande nada. Pelo menos é isso que tem conseguido, ou não?
Bem, faz lá um sorriso bonito, bem vais precisar dele este ano!

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Noite em quarto de Hotel

O cigarro que seguras na mão, e que raramente levas aos lábios, consome-se lentamente no escuro do quarto de pensão. O quarto é pequeno e além da cama de casal pouco larga e com duas mesinhas de cabeceira de cada lado, tem uma cómoda não muito grande com uma televisão minúscula em cima. As persianas estão corridas e apenas um pequeno retalho da luz da manhã entra pelo escuro. É o suficiente para desvendar as roupas que estão espalhadas pelo chão e o carreiro de fumo do tabaco que está a arder. Ouves sem qualquer entusiasmo os sons matinais do Hotel, as portas dos quartos que se abrem e fecham, o mecanismo do elevador que pára e recomeça e os passos incógnitos que atravessam apressados o corredor. Escutas tudo com atenção apesar de só teres dormido pouco mais de meia hora. O resto do tempo passaste-o a pensar se, na verdade, precisas mesmo de te envolver nestas noites e, se não, quais as opções que terás.
Já estás sentada na cama há várias horas. Não conseguiste dormir e também não te esforçaste muito por isso. Fumaste vários cigarros, alguns deles acendidos com a beata dos anteriores e tentaste sem êxito beber uma miniatura de whiskey do mini bar. Agora sentes um hálito horrível e desagradável na boca que te provoca um vazio no estômago e uma sensação terrível de desmaio. Estás fraca e deixas-te estar sentada a pensar como vais conseguir estar a trabalhar as próximas 8 horas. Apetece-te ir para casa dormir.
O Carlos está adormecido ao teu lado, sem qualquer peso de ter deixado a mulher e os seus dois filhos em casa. Está nu e tu não podes deixar de admitir que tem um corpo cuidado e bonito. Tem muitos pêlos nos braços e nas costas meia dúzia de borbulhas prontas a explodir. Em outras circunstâncias terias tentado espremê-las. Mas agora não, a ideia gera um arrepio que te percorre o corpo. Não queres voltar a tocar nele. Se a vida fosse um filme, tentarias sair da cama sem que aquele corpo acordasse. Era a melhor forma de acabar com tudo isto. Agradou-te a ideia de sair dali e tentas pular da cama em silêncio. Mas como a vida não é um filme, Carlos acordou com os movimentos. Olhou-te com um sorriso filho-da-puta e desejou-te os bons dias enquanto se espreguiçava.
- Sabes que horas são?
Não sabias. Encolheste os ombros e apagaste o cigarro no cinzeiro que tinhas seguro sobre as pernas.
- Foda-se, fumaste o maço todo ou quê? – esticou o braço para te tocar.
Esquivaste-te do gesto e começaste a apanhar as roupas por ordem inversa à que te despiste. Cuecas, sutiã, calças e camisola.
- Vem cá – pediu ele.
- Vou tomar banho.
- Vem cá.
Não foste. Fechaste a porta da casa de banho e puxaste o autoclismo depois de ouvires o Carlos a peidar-se.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Horoscopo

A tua secção é uma cidade moribunda cujos arranha-céus são construídos sobre requerimentos e ofícios empilhados na vertical. O assombro burocrático que se desenvolve pelas mesas e prateleiras asfixia o ar e impede a luz do sol de entrar pelos vidros sujos das janelas que apenas são lavados quando o inverno se torna rigoroso e a chuva desaba em tormento. Tu e os teus colegas sonham com o dia em que um incêndio de grandes dimensões vos liberte para sempre. Ao pensarem nisso conseguem mesmo ouvir o som das sirenes dos bombeiros a matraquear pelas ruas e o cheiro a papel queimado a entrar-vos pelas narinas.
Partilham também em conjunto a esperança de poderem vencer o primeiro prémio do Euromilhões. Contrariando a tendência racional e, como se a vida já não vos fosse repetitiva o suficiente, a escolha das apostas é também ela uma rotina inconsciente. De forma a poderem ter mais hipóteses, segundo a crença irreversível de alguns, jogam nos mesmos números todas as semanas. Não é de estranhar, portanto, que as tardes de sexta-feira sejam gastas a fazer planos para o futuro. Teorias, no caso de fortuna, há muitas. Os mais astutos abririam um negócio, os mais solitários não deixavam nunca de trabalhar e os mais saturados, como o teu caso, não faziam mais da porra da vida do que ficar todo o dia a arrastarem-se satisfeitos e orgulhosos pela letargia.
Este tema de conversação, apesar de ser um dos mais frequentes, é também aquele que suscita as opiniões mais apaixonadas e díspares. A felicidade que se estampa nos olhos de todos na hora de vociferar o juízo é tanta que acaba por ser comovente o momento em que a justa percepção da realidade vos arrefece o ímpeto. Os sorrisos desaparecem, as vozes desvigoram e, em silêncio, todos voltam, envergonhados, aos vossos teclados atestados de migalhas dos bruscos lanches enfardados na secretária a trabalhar.
O som do escritório volta ao normal.
...ouves os telefones a tocar, as máquinas a imprimir e uma leve brisa de desamparo a passar por ti.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Horoscopo

Lisboa está vazia e já não escutas as buzinas e os motores atestados de gasolina a trabalharem pelas estradas pequenas normalmente esfaqueadas de automóveis estacionados em 2ª fila.
Existem menos pessoas a atravessar nas passadeiras e gastas menos de metade do tempo a chegar ao teu local de trabalho.
O teu cérebro acostuma-se rapidamente a esta nova evidência e transmite-te pelo corpo uma sensação de agrado que te acalma e te faz sentir motivado para o resto do dia.
Fazes planos para as férias que desejas que tivessem começado neste preciso instante, enquanto a luz do dia te entra pelo vidro do carro e te ilumina a face barbeada.
O sinal está vermelho e és o primeiro da fila. Trauteias desafinado uma música que passa na rádio que apenas conseguiste decorar a primeira frase do refrão.
Como por magia todas as luzes dos semáforos da avenida tornam-se verdes. Abrem uma por uma com apenas um pequeno segundo de diferença entre elas.
Aumentas o volume do rádio e carregas no acelerador com força.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Horoscopo

É bem natural que o tema escolhido para interacção social nos próximos 3 dias seja a chuva e a sua abundância.
Independente para aonde a conversa caminhe, sabes que o fim-de-semana será passado em casa a ver e ouvir as gotas de água a baterem nos vidros.
Vai haver momentos em que te sentirás bem e momentos em que te sentirás deprimido(a) e angustiado(a). Seja como for vais aproveitar para dormir muito.
A eventualidade de te sentires tentado(a) pelos prazeres carnais vai aumentar bastante e não colocas de lado a possibilidade de seres tu a iniciares a sedução.
Se não conseguires, é porque tens um grave problema para resolver. No entanto, se te faltar a paciência para lidar com ele, podes sempre ignorar a sua existência.
As crianças, caso as tenhas, vão andar taciturnas e não vão melhorar o teu estado de espírito, principalmente se quiserem ver DVD’s aos quais já assististe 100 vezes.
Hoje, quando chegares a casa, calça as pantufas, abre uma garrafa de vinho, liga a televisão e vê as notícias.
Não esperes, contudo, que alguma coisa verdadeiramente surpreendente aconteça.

quarta-feira, 5 de março de 2008

A balada do jogador de sueca. (II)

Longo o hábito de João Brás na exímia arte de bater as cartas. A sua longa e comprovada experiência, e contrariamente a todos os julgamentos que possam existir sobre o tema, nunca foi nem nunca será, por si só, capaz de vencer todos os jogos em que intervém. No entanto, uma coisa parece autêntica. Ao fim do dia, quando se olham para os papéis rabiscados e se fazem os cálculos finais, dá-se facilmente conta que há mais pentes ganhos por João Brás do que por qualquer outro dos rivais. Existe mesmo, entre todos os praticantes que se juntam nas mesas do jardim, a clara e irreversível ideia de que ser um bom jogador de sueca exige uma inata sabedoria ancestral que vai buscar as suas raízes sabe lá Deus onde. Tal sapiência, contudo, não está ao alcance de todos, especialmente dos mais novos que, com medo ou por falta de atrevimento, têm sempre a infeliz tendência de guardar para o fim todos os trunfos que lhe caem em mãos em vez de os colocarem na mesa mal sintam os adversários fraquejar. Segundo Brás, a fibra dos verdadeiros homens sente-se na mesa de jogo e quando estes assumem, com coragem, a hora de destrunfar. E não é raro vê-lo, no calor das discussões tida à mesa de jogo, de sota de trunfo em risque a afirmar para quem o quiser ouvir:
- Os putos de agora são uns maricas! Se foderem como jogam às cartas o mais certo é serem eles os enrabados!
Estas tiradas impulsivas e apimentadas fazem as delícias de todos os que rodeiam a mesinha de metal pintada a verde onde as cartas cansadas pelo uso aterram e se desvendam. Retiram com uma franqueza comovente das bocas desdentadas e de próteses desniveladas daqueles homens o melhor que a vida lhes pode oferecer, uma gargalhada franca e sincera cujo som consegue afugentar, duma só vez, todos os pássaros das árvores.

Já velho e reformado, João Brás sente muito bem que a vida lhe é curta, mas as longas tardes à mesa com os outros conseguem torná-la eterna e brilhante.
Perdera a esposa dum momento para o outro. Beatriz foi sempre uma mulher adoentada e pobre, por isso era de adivinhar que a doença lhe levasse a alma mais cedo do que devia. Com a memória apagada aos poucos pelos cálices sagrados do vinho, João nunca se consegue lembrar com exactidão, quando questionado, se foi o coração ou a diabetes, mas em compensação sabe a data certa do óbito que se deu, cá para nós que fazemos conversa de tudo, há cinco anos. Todos os meses de Fevereiro, em respeito pela efeméride de tão funestas memórias, Brás chega-se á frente e compra um belo ramo de flores que deposita, sentido, na campa da mulher. Uma vez por ano chora e percebe o pouco que tem para oferecer ao mundo. Sente a sua mortalidade e solidão. Chega a casa deita-se e é o único dia em que não bebe uma gota de álcool nem joga às cartas. Não sabe porque o faz, mas sente dentro da sua simplicidade ordinária que é por respeito a alguma coisa que não consegue bem entender.

A reforma que recebe não é nada de especial, mas dá para os seus vícios. O cigarrito feito à mão, o futebol ao fim-de-semana e um copito ou outro de vinho tinto vindo directamente da pipa na tasca “O Carvoeiro”, um estabelecimento sujo e negro onde as baratas se sentem tão confortáveis como os bêbados.
João Brás, além do nome e dos números não escreve mais nada mas, como ele tem honra em afirmar, para se ser homem de verdade não se precisa de ser doutor. Trabalhou durante muito tempo nas obras e viu muitos engenheiros e doutores com muita mania e a saber muito pouco do ofício.
Lavar roupa, encomendar o gás e, acima de tudo, ter de se alimentar são das escassas artes que não domina. Para essas pequenas coisas do quotidiano é que lhe faz falta mulher, mas ninguém está para repartir o leito com alguém com tão pouco para oferecer além de noções complexas dum jogo inventado por surdos e mudos. João alimenta-se então dumas sopinhas de leite ao acordar, do vinho para matar a sede e duma ou duas buchas barradas com manteiga às refeições. Às vezes, quando a sorte o bafeja, e em troca de um ou dois galanteios, a vizinha lá lhe dá meia dúzia de fatias de fiambre que junta à manteiga na hora de fazer as sandes. A carne do porco sabe-lhe bem e fica contente por ter estas oportunidades a caírem-lhe do céu.
Para que a sua alimentação não falhe, fia-se no Matias. Um velho taciturno e de pesados passos que escolhera a vida de padeiro para sobreviver. Na verdade não é bem um padeiro como os conhecemos hoje em dia, mas antes um distribuidor de carcaças. Todas as manhãs acorda bem antes dos galos e lá vai ele, casa em casa, a distribuir o pão pelas maçanetas das portas. Cada cidadão seu cliente, tem todos os dias ao acordar, domingos incluídos, um saco cheio de papo-secos, e para isso só tem de pagar um excesso de 5 cêntimos por carcaça. A conta é junta ao último pedido do mês e escrito a lápis de carvão em números que fazem lembrar a caligrafia dos putos da primária. Nunca se conseguiu imaginar quantas carcaças tem aquele pobre coitado de vender por dia para poder sobreviver, mas graças a ele é que João pode ter pão em cima da mesa todos as manhãs sem ter de ir à padaria. Isso é, sem discussão possível e por muito que pareça obsceno, uma benção enorme na sua miserável vida. No entanto o velho padeiro, faz-se acompanhar a todas as horas, as de domingo incluídas, por um cão pasmacento e manco. Teve o desgraçado do animal o infeliz acaso de ser atropelado a 5 metros do Matias e de ser ele o primeiro a segurar-lhe na cabeça ensanguentada. Este lúgubre acontecimento fê-lo ser o cão do padeiro, e isso fodeu-lhe toda a réstia de esperança de ter um dono fino que lhe pegasse, com sacos de plástico, a sua merda quente depois de cagada. Apesar de estar sempre com cara de adoentado e com o corpo a pesar-lhe nas patas, nunca houve registo de não ter acompanhado o dono, uma única vez que fosse, na esgotante lida diária. Todas as doenças de cão que teve, e não se tenha pudor em dizer que foram muitas, curou-as sozinho enquanto trabalhava. Acordava cedo e sem nunca ladrar fazia-se às ruas, acima e abaixo com o dono a seu lado. O cansaço nunca lhe abandonou o pêlo, e isso era visível a quem por ele passava, razão para que, tirando o dono, nunca recebia festas no lombo, mas tratavam-no sempre como cão e essa era a única alegria que podia tirar da vida além, pois claro, do pão quente que o Matias lhe atirava ao chão às cinco da manhã.

Os longos jogos de sueca marcam as tardes de todos os dias. Começam depois do almoço e acabam quando o sol dá as últimas. Os estóicos vencidos revezam-se sempre que um pente é preenchido e acabam invariavelmente por serem alvos de todos os tipos de apupos possíveis. A coisa por vezes chega tão baixo, que é necessário a assistência intervir, separando à força das palavras, os arruaceiros. Como as equipas são sempre as mesmas, existem ódios duradouros que só param quando alguém morre. O que acontece frequentemente e sem nunca se esperar. Não há, contudo, o homenageante hábito de se assistir ao funeral do próximo, nem mesmo quem, com eles dividia os louros das vitórias. Homem morto é homem reposto e a lista de espera para jogar já vai longa. O parceiro de João Brás chama-se Quim que têm o péssimo hábito de o culpar de todas as derrotas. João não se fica e responde sempre à altura. São raros os casos em que se assiste a um ambiente tão mau no seio duma equipa. Mas tanto João Brás como o Quim não conseguem, contudo, jogar com mais ninguém, embora as ameaças de parte a parte sejam no sentido de a parceria acabar mais dia menos dia.
O vinho, ao contrário da tendência dos mais eruditos, não servia para enaltecer a confraternização, mas antes para atear o ódio entre todos. Quem perdia pagava copos aos outros, e ao fim do dia era raro aquele que não tombava pelos passeios a caminho de casa. Os casados ouviam, já dentro dos respectivos lares, os gritos eufóricos das mulheres que se queixavam porcamente da vida e daquilo que os vizinhos haviam de pensar; os solteiros por seu lado, airosamente prolongavam o dia e em romaria iam jogar à moeda para a tasca “O Carvoeiro” que estava sempre aberta até ao dono adormecer e cair para o chão, nunca se sabendo se por cansaço se por embriaguez.

Os Domingos são gastos de rádio de pilhas na mão a conferir, em directo, os resultados do totobola. Quando o honroso e glorioso Olivais e Moscavide joga em casa, Brás desloca-se até ao campo. Quer perca quer ganhe, o árbitro não sai do recinto sem ouvir mais do que uma vez as suas tão apreciadas vaias. É um homem rancoroso e que não esquece facilmente. Especialmente no que tocava aos maus momentos do homem do apito. Se o pobre desgraçado tiver o azar de assinalar erradamente, por exemplo, um simples lançamento lateral no início do jogo, então há festa até ao fim. Não interessa as vezes que repete as palavras da ofensa, desde que a razão permaneça com ele e o juiz saia do relvado com o orgulho ferido. Aproveita estas idas à bola para, inconscientemente gastar algum do seu dinheiro em sandes de coirato. O cheiro da gordura grelhada ao carvão puxa-lhe pelo apetite e já se sabe como elas sabem, especialmente para alguém que faz da bucha com manteiga a sua dieta diária. Bebe cerveja para empurrar o alimento, mas prefere em muito o vinho, que para além de ser mais barato bate mais forte na alma. As circunstâncias da vida fazem-no pensar seriamente na forma como deve gastar o dinheiro. Não se pode acusá-lo de não saber gerir os seus proveitos, isto apesar de uma ida ao futebol o deixar praticamente nas lonas. É importante para João mimar-se de quando em vez. O futebol ocupa-lhe uma parte considerável do tempo, embora só assistisse aos jogos do Olivais e Moscavide. Às segundas após acordar, tem o hábito de estar horas de totobola na mão a estudar as possibilidades da semana. Não aposta tanto quanto deseja, o dinheiro escasseia, mas sempre tem algum para as duas duplas e a tripla da praxe. Nunca teve muita sorte, uma vez ainda alcançou, a custo, o terceiro prémio. Não lhe valeu de muito, depois de levantar o dinheiro portou-se como um verdadeiro milionário e em menos de duas horas já não tinha nada a não ser uma piela monumental e a certeza de que para a próxima é que era. Mas apesar da legítima esperança, nada aconteceu e na semana seguinte o resultado foi tão desastroso que teve duas semanas sem jogar devido à angústia.
- Parece que fazem de propósito os cabrões, não é que perderam todos - dizia ao Quim enquanto molhava a ponta do lápis e fazia riscos nos resultados falhados.
À medida que os anos passam, desenhava-se no seu pensamento a ideia clara de que o mundo do futebol é um regabofe, e que aquilo tudo é uma cambada de ladrões que ganha rios de dinheiro à custa dos outros. Apesar da destreza intelectual, não muda os hábitos de domingo. Incluiu, como forma de protesto, o senhor da bilheteira no grupo de alvos do seu escárnio. O homem dos bilhetes deixa-o falar e ir em paz, mas desabafava ao freguês seguinte, “Ele que fique em casa, olha que caralho!”
Não se pode dizer que João alguma vez fosse um homem bonito, muito menos que tivesse um mínimo de charme. No entanto teve os seus momentos gloriosos com o sexo oposto. Tirando a mulher, nunca conseguiu comer alguém sem desembolsar o pouco que tinha. Premissa inabalável era o ter de pagar antes de foder. As putas, espertas, não iam em balelas e achavam por bem ver para crer. O romantismo que lhe estava entranhado fazia-o falar das suas relações como se não representassem um negócio entre as partes envolvidas. Tinha-as como conquistas suas, e na verdade era preciso algum jeito para que se deitassem com ele.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

A Balada do Jogador de Sueca

Pelo motivo inexplicável de ter bebido muito pouco no dia anterior, facto insólito para quem o conhece nem que seja só de vista, João Brás acordou bem mais cedo do que é costume. A vida que se esforçava por levar não permitia que fosse um madrugador. Também não o desejava. Desenvolveu ao longo da vida suficiente respeito por si próprio para só sair da cama quando não lhe sobrasse sono algum. Ainda há uns dias atrás, em jeito de provocação, desafiaram-no para se envolver profissionalmente no rentável negócio de guardar a vez dos outros na sempre tão concorrida fila do centro de saúde. O trabalho nem era complicado, consistia em estar à porta do Centro a partir das seis da manhã e marcar, quando chegasse ao guichet, uma consulta para algum necessitado. Desde que morrera a D. Elvira que mais ninguém pegou no biscate, nem sequer as eternas invejosas de que muito se queixavam da legitimidade do negócio, chegando mesmo a fazer algumas denúncias anónimas na polícia, embora sem o sucesso desejado. Os valores eram sujos, chegou-se mesmo a falar em três contos por consulta marcada para o próprio dia. Mas havia quem não pensasse duas vezes, principalmente a desgraçada da D. Engrácia, que em tempos difíceis pariu 4 filhos, todos eles frangalhotes e que volta e meia apareciam com um vírus novo. Alguns curava-os o tempo, outros nem a própria médica os conhecia. A pobre da Engrácia, que muito labutava para que houvesse sempre pão e sopa sobre a mesa, tinha o infortúnio do patrão ser pior que os animais e de não a deixar faltar, nem pelo mais forte dos pretextos. Cada minuto fora equivalia a uma hora descontada do ordenado, e não havia mas…ou se contentava com o que tinha ou então era substituída por outra que se submetesse com agrado e bons modos ao mesmo.

Era desta forma que, nestes conturbados tempos de modernidade económica, em que os homens mais parecem bichos, que a D. Elvira fez a sua fortuna. Conseguia mesmo ganhar quase outra reforma em meses de grandes calamidades. O que nem sequer era difícil, tendo em conta as variações de temperatura e a fragilidade dos novos rebentos.
Com o dinheiro arrecadado, rapidamente alargou o negócio para a agiotagem. A desamparada da Engrácia, aflita com tantas contas para pagar, era também aí a sua melhor cliente. Os juros não eram muito altos, mas seja como for, o que ganhava nos seus negócios dava para oferecer aos netos tudo aquilo que os molengas dos filhos não lhes podiam comprar.
Elvira era uma velha rija e nunca se assustou com quem não lhe queria pagar. O seu vizinho, toxicodependente por descendência, fazia questão de ser o cobrador, desde que, evidentemente, tivesse algum proveito pela sua inquestionável boa vontade. Aproveitava-se do seu nome, manchado pelas ruelas, para servir como método de persuasão. Fazia-o, no entanto, mais para perpetuar o nome da família do que propriamente pela velha, mas desde que decidiu ajudar Elvira, droga foi coisa que nunca lhe faltou. Mas, e apesar do escritor estar a gostar, chega de falar da Elvira deixando apenas o altruísta desejo que Deus lhe tenha a alma em paz.

João Brás, após o calmo despertar e como era seu apanágio, apalpou calmamente o seu abono de família. Contrariamente à sua vontade, não sentiu grande desenvoltura nele e por essa razão desistiu de se tocar. Por vezes, quando os despertares eram bafejados pela intervenção divina, ainda conseguia masturbar-se, mas a tendência, e apesar dos seus contínuos esforços era para, mais dia menos dia, deixar-se dessas aventuras. Tinha a consciência que o tempo das alvoradas gloriosas lhe passara por entre as palmas das mãos, mas ficava contente se uma vez por mês tivesse motivos sólidos para se contentar.

Acendeu a televisão e ficou a ver o programa matinal. Sempre o mesmo. Velhas chorosas pela reforma que não se esticava e que entravam em concursos da treta para poderem multiplicar o seu pecúlio. Na maioria das vezes conseguiam, apesar de nem sempre as perguntas serem fáceis.
- Então diga lá minha senhora qual é a capital de Espanha…
A velha coitada, lá dizia do outro lado da linha uns ais para ganhar tempo enquanto esperava uma revelação divina. A apresentadora, cheia de boa vontade, tratando as velhas concorrentes como filhos lá ajudava.
- Vá eu vou dar uma ajudinha…Ma…Ma…Ma…
E a velha nada…
- Ma…Ma…Ma…
E derepente a luz:
- Ma…Ma…Marcelona!!!!

João nunca tinha vontade de fazer o pequeno-almoço, isso apesar da fome acordar bem antes dele próprio. Dava muito trabalho e tudo o que desse trabalho era alvo de desinteresse. Esperava assim até ao meio-dia, lá para a altura em que a sirene dos bombeiros soava pelos céus quer fizesse chuva ou sol, e juntava-se aos outros coitados que dividiam a panela de sopa no Centro de Dia. Era uma vida de merda, ele sabia-o, mas pouco importava. Era o preço que tinha de pagar para ter acesso à sua grande paixão de barriga cheia. As cartas. Não as 52, como os baralhos inteiros vindos da China têm, mas apenas 40, dez de cada cor como mandava a tradição e o hábito.
Era então por isso, sempre que se sentava no banco do jardim e era anunciado o trunfo depois de lhe darem as suas dez cartas, que meus amigos, o mundo calava-se e apreciava maravilhado a sua arte.